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domingo, 27 de junho de 2010
Por uma civilização da ternura
A herança de Comboni - Por uma civilização da ternura
Por: ALEX ZANOTELLI, Missionário Comboniano
Por todo o lado, injustiça, guerra, sede de domínio, esbanjamento, exploração, destruição, esgotamento dos recursos. O sistema mantém e reproduz o mal, o pecado é idolatrado como instituição. Para recuperarmos o grande sonho de Deus, tem de nascer o homem novo – o homem planetário. Urge construir a civilização da ternura. Todos juntos.
Mudar o Mundo, Um Desafio para a Igreja era o título de um livro publicado em França em 1980, escrito por Vincent Cosmao, director do Centro Lebret. Foi Lebret, dominicano francês, muito estimado por Paulo VI, quem fez o primeiro rascunho da encíclica Populorum Progressio e inventou o slogan «Mudar o mundo». Esse livro marcou-me profundamente. Havia entrado recentemente para a redacção da revista Nigrizia, e o pensamento do padre Cosmao influenciou-me muito. E ainda hoje conserva uma fulgurante actualidade.
O padre Cosmao, que detinha uma notável experiência de serviço em Dacar (Senegal), baseia-se em quatro pontos fundamentais: «O Evangelho, Boa Nova anunciada aos pobres, é a força de Deus para a transformação do mundo.»; «a tradição judaico-cristã é atravessada por uma sequência, descontínua, de tentativas para regulamentar a tendência da sociedade em estruturar-se na desigualdade.»; «o empenho pela justiça ou contra a injustiça é uma das linhas de força da prática e da pregação dos profetas.»; «a prática e a pregação de Jesus põem em relevo o direito dos pobres a participarem na vida colectiva e nos seus frutos.»
Estes pensamentos de Cosmao, que resumem as escrituras hebraicas e cristãs sobre este assunto, foram reforçados e enriquecidos em mim com a leitura e a prática das comunidades dos pobres no Sul do mundo, sobretudo em Korogocho (bairro de lata de Nairobi), e com o aprofundamento bíblico feito por peritos norte-americanos, que viveram e vivem em comunidades de resistência. Um deles, Walter Brueggeman, explica assim no seu livro The Prophetic Imagination as novas intuições sobre a tradição judaico-cristã: Javé confiou ao seu servo Moisés o seu «grande sonho» (Salmo 106) para que o seu povo, Israel, pudesse viver como comunidade alternativa aos impérios ou às cidades-estados do Médio Oriente. Cada império desenvolve-se numa economia de opulência (poucos ricos de barriga cheia à custa de muitos mortos de fome!), que requer uma política de opressão abençoada por uma religião onde deus se torna o deus do sistema.
Pelo contrário, Deus sonha que o seu povo se torne uma comunidade alternativa ao império. Para isso, tem de perseguir uma economia de igualdade (onde os bens, como a terra, sejam divididos com justiça), que se poderá conseguir unicamente se se adoptar uma política de justiça. Tudo isto pode ser possível se Deus for entendido como o «totalmente outro», como o radicalmente livre e, portanto, não seja o garante da ordem imperial. Javé é aquele que está do lado dos oprimidos, dos escravos, dos marginalizados... e, por isso, questiona qualquer império que crie excedentes! E quando Israel atraiçoa esta tradição (com Salomão), surgem os profetas que recordam ao povo o sonho de Deus e, em nome desse sonho, colocarão o dedo na ferida em carne viva.
O grande sonho de Deus
Jesus encarnou aquele sonho de Deus, que nele tomou um rosto («o Verbo fez-se carne») e o proclamou naquela Galileia espezinhada pelo imperialismo romano que sugava o sangue daqueles pobres camponeses (a Boa Nova aos pobres!).
Ao povo da Galileia que «jazia nas trevas e na sombra da morte», como Mateus afirma, Jesus anunciou a esperança. «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres... a proclamar a libertação aos cativos... e um ano favorável da parte do Senhor» (Lc. 4, 18-19). Segundo Lucas, Jesus teria proclamado o ano jubilar, que não era senão uma maneira de fazer regressar o infiel Israel àquela economia de igualdade que Javé sonhava para o seu povo. «Anunciar a Boa Nova aos pobres significa mudar as realidades socioeconómicas e espirituais fundamentais dos camponeses endividados, de gente sem terra, desempregados, escravos», afirmam as duas biblistas americanas R. e G. Kinsler. «É importante notar que o ano de graça que Jesus proclamou como chegada do reino de Deus não era mais um ano em cada sete ou um ano em cada cinquenta, mas uma nova era de libertação perpétua de todos os géneros de opressão para todo o povo de Deus.»
Jesus, naquela Galileia esmagada sob o tacão imperial romano, relança de forma solene o grande sonho de Deus, partindo daqueles pequenos grupos ou comunidades nas aldeolas da região que haviam acolhido a sua mensagem. «A intuição de Jesus não era guiar os seus seguidores para comunidades desencarnadas, mas criar comunidades alternativas que pudessem resistir e desafiar os sistemas de poder, como Ele mesmo fez, pagando pessoalmente», escrevem Richard Horsley e Neil Silberman nos seus estudos The Message and the Kingdom. «O reino de Deus que Jesus proclamava era precisamente aquela ordem socioeconómica e espiritual anunciada na lei e nos profetas e condensada na visão do sábado-jubileu. Jesus renovou a memória subversiva das tribos de Javé e a expectativa do reino de Deus nas aldeias da Galileia.»
A novidade surgia assim vinda de baixo em agradáveis comunidades alternativas onde se pregava o acolhimento, o perdão recíproco, e dos inimigos, a remissão das dívidas, o «partir o pão» (símbolo daquela economia de igualdade do grande sonho de Deus!).
Jesus, andando pelas aldeolas da Galileia, fazia nascer a vida, florescer a esperança. «Vim para que tenham vida e a tenham em abundância», diz Jesus no Evangelho de João. Quem deseja e luta pela vida, e vida em abundância, num sistema de morte, será tido como uma séria ameaça ao próprio sistema, ao império.
E quando Jesus resolve marchar sobre Jerusalém com a pobre gente da Galileia, o sistema reagirá condenando-o à morte na cruz reservada por Roma aos escravos e aos instigadores contra o Império. Jesus foi crucificado fora dos muros de Jerusalém. E a esse crucificado o Abba (Papá) manteve-se fiel. «Está vivo! Ressuscitou!» E em seu nome aqueles primeiros discípulos relançarão o grande sonho de Deus que se exprimirá através das comunidades alternativas de Jerusalém (Actos dos Apóstolos), das comunidades paulinas alternativas ao império (as cartas de Paulo) e das seitas ekklesiai do Apocalipse alternativas ao ethos imperial.
Sistema de morte
Infelizmente, tornando-se, com Constantino, a religião do império, o cristianismo perde a sua função de ser consciência crítica, transformando-se, em vez disso, em religião civil.
Para sair desta situação, Vincent Cosmao propõe outros quatro pontos fundamentais: «Tornando-se religião civil do Ocidente, o cristianismo perdeu, com o andar dos tempos, a sua capacidade de resistir efectivamente à reestruturação das sociedades na desigualdade.»; «recusando tornar-se religião civil do mundo, o cristianismo reencontra a sua possibilidade de se tornar mensageiro das esperanças dos pobres.»; «quando Deus é visto como guardião da ordem, o ateísmo torna-se a condição da transformação social.»; «a leitura crítica da história da Igreja é a condição dolorosa do relançamento do cristianismo como movimento histórico.»
Só se soubermos, como cristãos, voltar a ser consciência crítica da sociedade encontraremos toda a força subversiva do Evangelho, boa nova para os pobres. «Dado que o mundo se estruturou no pecado – prossegue Cosmao –, a participação na sua transformação torna-se condição da conversão a Deus em Cristo Jesus.»
É evidente que o mundo de hoje «se estruturou no pecado». O nosso é um sistema de morte. Vivemos dentro de um sistema económico-financeiro que massacra milhões de seres humanos. São as grandes potências financeiras que governam o mundo (300-400 «famílias»!). É a dívida colossal de 2,500 mil milhões de dólares a sufocar os pobres, que todos os anos pagam aos ricos 200 mil milhões de dólares. São os pobres a pagar a dívida com a fome e a falta de remédios, escolas, hospitais... Hoje, com as novas tecnologias, os pobres já não têm qualquer utilidade como «força de trabalho», mesmo pagos com salários de miséria, transformam-se nos novos marginalizados, em excedentes! Mais de mil milhões de seres humanos são considerados inúteis. Vinte por cento da população mundial detém e consome 83 por cento dos recursos. Os restantes 80 por cento apenas recolhem as migalhas: 17 por cento! De facto, 60 por cento (os pobres) têm de se contentar com 15,6 por cento dos recursos, enquanto para os 20 por cento dos mais pobres (os miseráveis) apenas resta 1,4 por cento dos recursos. No Sul do mundo, em apenas 10 anos, o número dos miseráveis aumentou quase 100 milhões.
No último relatório da Unicef (2002) afirma-se que em 2001 morreram 11 milhões de crianças com doenças menos graves que uma gripe. Hoje estão a regressar doenças que pareciam debeladas: em 2001, a doença do sono matou 300 mil pessoas, a tuberculose oito milhões. E a malária, em África, mata mais que a sida.
A decisão das multinacionais farmacêuticas americanas e europeias de proibirem a produção de remédios anti-sida no Sul do mundo acarreta a morte a 28 milhões de doentes de sida na África. Ainda em 2001, cerca de 120 milhões de crianças não puderam frequentar a escola primária! Este sistema económico-financeiro declarou guerra aos pobres, é a guerra mundial que mata 30-40 milhões de pessoas por ano!
Surge espontânea a pergunta: como pode um sistema destes aguentar-se? Como pode 20 por cento da população mundial continuar a consumir 83 por cento dos recursos? E a resposta é só uma: as armas! Porque os 20 por cento estão armados até aos dentes! As armas servem para manter privilégios e riquezas!
A guerra infinita
Em 2002, os EUA investiram algo como 500 mil milhões de dólares na defesa! A que é preciso acrescentar ainda os 60 mil milhões de dólares concedidos pelo Congresso a pedido de Clinton para renovar todo o arsenal atómico. Sem esquecer 50-70 milhões de dólares para a construção do escudo espacial, que nos custará, quando os trabalhos estiverem terminados, 300 mil milhões de dólares. E, por fim, a guerra do Iraque, que já custou aos EUA cerca de 80 mil milhões de dólares.
As armas são o motor da economia. O nosso é um sistema económico-financeiro militarizado. É um sistema permanentemente em guerra. A guerra contra o Iraque é apenas o início: é uma guerra infinita. É um nunca acabar de guerras: há mais de 40 conflitos no mundo! A África encontra-se a braços com cerca de 17 conflitos sangrentos. Só na Libéria registaram-se já mais de 200 mil mortos!
Mas é sobretudo a guerra na RD Congo que nos horroriza! Seis anos de guerra: quatro milhões de mortos! Uma guerra orquestrada em Washington, Paris, Londres..., uma guerra pelas imensas riquezas do Congo, sobretudo ouro, diamantes, cobalto, tântalo (que é usado nos telemóveis). Minérios sangrentos! Com um silêncio total por parte da imprensa ocidental.
É já claro para todos que os mass media são, na sua grande maioria, parte integrante do sistema económico-financeiro militarizado. Nos EUA, os mass media encontram-se nas mãos de uma dezena de enormes complexos económico-financeiros. Em Itália, o primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, é dono de 90 por cento dos media, e não quer ficar-se por aí, aproveitando as facilidades da Lei Gasparri. O poder mediático encontra-se hoje solidamente nas mãos do poder económico-financeiro. Os media existem não para nos informarem, mas para nos venderem uma mercadoria (até a notícia é uma mercadoria!). É a mercantilização da informação.
Já Karl Popper (um dos mais notáveis pensadores nos EUA) dizia há anos: «Com esta televisão não pode haver democracia!»
Estrangular o mundo
Vivemos mergulhados num sistema económico-financeiro militarizado e mediatizado que mata não apenas com fome e guerra, mas destrói o próprio planeta. Cientistas como Lester Brown (assina o relatório anual O estado do mundo) avisam-nos de que temos pouco tempo (cerca de 50 anos) para que os 20 por cento do mundo, os ricos, mudem o estilo de vida. Se nos recusarmos a mudar, não será possível às gerações vindouras sobreviverem. O problema não vem dos pobres, mas dos 20 por cento de ricos do mundo. De facto, os 20 por cento de ricos do mundo gastaram mais recursos nestes últimos 50 anos que toda a humanidade num milhão de anos!
Se os outros – 80 por cento da população mundial – pretendessem viver como vivem os 20 por cento do mundo rico, precisaríamos de quatro planetas Terra como reservatório de recursos e de outros quatro planetas Terra como lixeira para vazar o nosso lixo. Este sistema é insustentável.
Bastaria ler o que afirma a International Geosphere Biosphere Programme (o programa científico mais importante sobre a mudança global em curso no mundo): Em poucas gerações, a humanidade gastou reservas de combustíveis fósseis geradas em centenas de milhões de anos, estando à beira do seu esgotamento; a concentração na atmosfera de diversos gases que fomentam o efeito de estufa, sobretudo o anidrido carbónico e o metano, aumentou perigosamente, originando rápidas mudanças climatéricas.
De 1992 a 2001, as emissões globais de carbonos aumentaram nove por cento (só nos EUA registaram-se 18 por cento). As catástrofes acontecidas neste Verão na Europa são um sinal do futuro que nos espera. Estamos a estrangular o universo com as nossas próprias mãos!
Grande sistema de mal
Não podemos viver em sistemas de morte sem nunca nos apercebermos do mal em relação aos comportamentos sociais. Reporto aqui a reflexão de um dos maiores bispos da África, o arcebispo católico Dennis Hurley, agora aposentado: «Seríamos levados a crer que os comportamentos sociais são responsáveis pela maioria dos males que se abatem sobre o mundo, males grandes e desastrosos, mas não imputáveis, se os analisarmos bem, a indivíduos, ou se o forem, a muito poucos.» E o arcebispo acrescenta: «Se pensarmos no grande mal que o colonialismo, o capitalismo, o nazismo, o fascismo, o marxismo causaram..., podemos interrogar-nos quantos agentes, pelo menos na massa (e isso significa a maioria), pecaram realmente em sentido moral. Quase sempre eram motivados por comportamentos sociais – cegos e paralisantes comportamentos sociais.»
E com amargura Hurley, partindo da sua experiência na África do Sul do apartheid, diz: «É possível crescer até à maturidade e para além dela numa sociedade que vive e prospera baseada na injustiça. Como faz a sociedade branca da África do Sul, sem nunca se aperceber disso. É possível fazer parte de um grande sistema de mal sem saber. E tudo isso devido aos comportamentos sociais!»
Poucos teólogos entenderam isso tão bem como o tanzaniano Laurenti Magesa: «A pior espécie de pecado, de facto o único pecado mortal, que tornou o homem escravo durante a maior parte da sua história, é o pecado institucionalizado. Na instituição, o vício parece virtude, ou é de facto considerado como tal. Nasce assim a apatia para com o mal, qualquer reconhecimento do pecado é totalmente cancelado, instituições pecaminosas são absolutizadas, quase idolatradas, e o pecado torna-se mortal de maneira absoluta. Na Sagrada Escritura, o pressuposto para o arrependimento (como, afortunadamente, o é para o catecismo) é o reconhecimento e a admissão da culpa. Mas o reconhecimento do mal, e por conseguinte o arrependimento do pecado, torna-se praticamente impossível quando o pecado é idolatrado como instituição.»
A primeira conclusão é que na vida da Igreja «se prestou muita atenção à dimensão pessoal – prossegue Hurley –; chegou a altura de dedicar-se, na mesma medida e até mais, à transformação social.» E Hurley acrescenta que na história da história da Igreja o Evangelho transformou radicalmente pessoas – Saulo em Paulo, Inácio de Loiola de cavaleiro de Carlos V num homem novo... –, mas não temos nenhuma sociedade ou cidade-estado ou nação que tenha sido radicalmente transformada pelo Evangelho.
Juntos podemos
É preciso uma autêntica revolução antropológica: partindo da pessoa (a conversão é pessoal) chegar aos comportamentos sociais. Poucos o perceberam tão bem como o americano Walter Wink no seu estupendo livro Regenerar os Poderes. «A irredutibilidade do social ao pessoal e do pessoal ao social: estes dois princípios formam uma unidade indissolúvel e contra qualquer mero reducionismo individualista ou sociológico. Deus quer a transformação dos indivíduos e da sociedade. Entraremos na Nova Jerusalém como indivíduos, mas com as nossas nações, redimidas ou saradas pelas folhas da árvore da vida (Apoc. 21, 24-26; 22, 2). O anúncio do Evangelho e a luta social são os dois braços da tenaz do único empenho na transformação do mundo. Os poderes são bons, os poderes decaíram, mas os poderes são redimíveis. Eis uma esperança digna d’Aquele em, através e em vista do qual existem todas as coisas, uma esperança que celebramos e cantamos no antegozo da restituição de todas as coisas ao abraço do amor de Deus.»
Para mudar o sistema, precisamos de uma revolução humana, antropológica. Como surgiu, a certa altura da evolução humana, o Homo sapiens, assim agora deve surgir o Homo planetarius, diria o padre Balducci. É um salto de qualidade humana que tem de ocorrer. É a recuperação da dignidade de cada pessoa humana, de cada rosto... Cada rosto é único e irrepetível, cada rosto é uma página de história sagrada. Cada encontro é graça! Eu sou as pessoas com quem me encontro! Mas não haverá o meu rosto se eu não acolher o rosto do irmão e da irmã, uma riqueza para mim porque diferentes de mim! Diferentes pela cor, pela cultura, pela religião, pelo género!
«Não há humanidade sem ser no plural – dizia o bispo de Orão, Claverie, vítima de um atentado em 1996 – e eu preciso da verdade dos outros!» Os imigrados entre nós são uma enorme riqueza cultural, religiosa, antropológica que nos torna a todos mais ricos se os acolhermos. O rosto do meu irmão, uma riqueza para mim, porque diferente de mim, o rosto da minha irmã... O coração de uma mulher é a ternura. De um sistema como o nosso, violento, patriarcal e machista, temos de passar para a civilização da ternura: nisso, os rostos das nossas irmãs desempenharão um grande papel se souberem manter-se fiéis à sua ternura transformando-a em princípio político vencedor. Não haverá nem o meu rosto nem o do meu irmão enquanto houver rostos de crucificados. Neste mundo, ou somos todos rostos ou ninguém é rosto! Ou todos somos cidadãos ou ninguém o é! Senão seremos meros tubos digestivos para atirar ao lixo.
Tem de nascer o homem novo, diria Paulo, tem de nascer o homem planetário. Precisamos de dar um salto em humanidade, mas de forma aberta, festiva, comunitária. É fundamental este estar juntos, fazer comunidade. Só as comunidades poderão resistir a este sistema de morte. Juntos podemos.
O mundo nas nossas mãos
Temos de nos convencer de que, juntos, podemos conseguir mudar o mundo. Como? Eis alguns exemplos. No campo económico-financeiro:
* Estilo de vida pessoal. Vivemos acima das nossas possibilidades. Comemos de mais, viajamos de mais, compramos objectos de marca... Temos de começar a compreender que se pode viver com muito menos.
* Estilo de vida familiar. São muitas as famílias que começam a praticar os «orçamentos de justiça», isto é, a fazer os orçamentos familiares e depois cortar o que está a mais.
* Comércio justo e solidário. Nasce da consciência de que o comércio escraviza os pobres. As Lojas do Comércio Justo compram em cooperativas de agricultores ou artesãos do Sul do mundo pagando um preço justo aos trabalhadores e vendem em espaços que se tornaram local de encontros, centros de resistência ao sistema e de construção de comunidade.
* Banca Ética. Assegura (pode-se controlar) que o nosso dinheiro é investido em projectos que servem às pessoas, aos pobres... e não em armas, droga...
* Sobriedade. Assenta em quatro imperativos que começam pela letra erre: a) Reduzir – olhar apenas para o essencial; b) Recuperar – ou seja, reutilizar o mesmo objecto enquanto for possível; c) Restaurar; d) Respeitar.
* Consumo crítico. Todos nós votamos hoje quando vamos ao supermercado, aos centros comerciais. É aí que “elegemos” o sistema. Os produtos de certas multinacionais como a Nestlé encontram-se já na lista negra de diversas campanhas. O importante aqui é lembrar que estas campanhas terão êxito se forem expressão de entidades, comunidades, associações... Se, por exemplo, todas as escolas superiores de uma cidade boicotarem os chocolates Nestlé no intervalo da manhã, e o fizerem escrevendo à Nestlé, ao centro comercial e aos jornais locais, a campanha pode ter um impacte notável.
* Poupança responsável. Há que excluir imediatamente os bancos que se envolvem com armas, com os paraísos fiscais, com os regimes opressivos. Também aqui não são campanhas pessoais, mas boicotes colectivos. Se, por exemplo, as dioceses de uma região decidirem retirar o seu dinheiro de bancos ligados ao comércio de armas, teriam um impacte público enorme.
Quanto à prevenção da guerra e à promoção da paz, sugere-se:
* Opção pela não-violência activa. É fundamental a opção pela não-violência activa que Gandhi popularizou, mas que foi inventada por Jesus de Nazaré. Trata-se de uma questão de vida ou de morte, que a todos diz respeito.
* Dizer não ao rearmamento e sim ao desarmamento. É fundamental para iniciar campanhas, movimentos para deter a escalada de rearmamento a que estamos a assistir. Temos de dizer não à bomba atómica, que é a negação de Deus. Temos de ajudar toda a gente a compreender que é preciso escolher entre Deus e a bomba atómica.
* «Não à guerra justa». A Igreja tem de abandonar o conceito de guerra justa. Depois de Hiroxima não há mais guerra justa. João Paulo II indicou-nos o caminho de forma profética com a sua forte oposição à guerra contra o Iraque. A Igreja tem de dar um salto qualitativo a este nível.
* Campanha Bancos Armados. É clara a ligação finança-armas. Por isso, qualquer banco conotado com armas tem de ser boicotado.
* Objecções de consciência. Diante de uma tão grande militarização, é importante avançar com as diversas objecções de consciência: a) Profissional – recusa, por parte de quem trabalha na fábrica, de construir armas ou de fazer investigação militar. b) Objecção de consciência à tropa – recusa de ir à tropa, porque hoje os exércitos são profissionalizados e têm como única finalidade a guerra, matar. c) Fiscal – recusar pagar impostos para aquilo que o Governo investe em armas.
É claro que este sistema económico-financeiro militarizado se conserva de pé devido ao enorme poder dos mass media. É inegável o impacte que, sobretudo, a televisão tem nas pessoas:
* Não à televisão. Quanto menos televisão virmos, melhor ficamos.
* Sim à leitura de jornais sérios, de revistas empenhadas ou de livros.
* Utilizar a Internet para difundir notícias e criar redes.
* Maior utilização da rádio, sobretudo das rádios locais, para dar notícias.
Empenho ecológico. É claro que este sistema económico-financeiro destrói o planeta. Cada um de nós pode fazer muito para reduzir o impacte negativo, mesmo no quotidiano:
* Protestar quando nos embrulham os produtos com uma embalagem excessiva;
* Privilegiar os produtos da agricultura biológica;
* Privilegiar os produtos embalados em vácuo no vidro;
* Perguntar se os objectos que compramos têm arranjo;
* Exigir que os produtos que compramos não sejam fruto de trabalho infantil ou tenham poluído os países de onde vêm;
* Comprar, sempre que possível, nas Lojas de Comércio Justo e Solidário;
* Adquirir, sempre que possível, produtos locais.
* Reciclar cuidadosamente todas as matérias, para evitar desperdício de materiais e combater a incineração do lixo.
* Recusar os produtos com embalagens inúteis.
Tudo isto requer uma coordenação e uma incrível capacidade de agir em rede. É esse o segredo que permitirá a este movimento dar um salto de qualidade, como insistem em dizer os americanos Brecher e Costello nos seus dois esplêndidos compêndios Contra o Capital Global e Como Construir Um Movimento Global. Não vai ser fácil, mas é uma grande esperança se se quiser evitar uma catástrofe.
Fonte do texto:
www.alem-mar.org
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