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terça-feira, 28 de maio de 2013

TECNOLOGIA - PRA QUÊ MESMO?





 Os três estágios da técnica, segundo Ortega y Gasset:
 1. a técnica do acaso; 2. o artesanato; 3. a técnica do técnico.


 1 A técnica do acaso não consegue senão um escasso repertório de atos, sempre iguais, produzindo as mesmas coisas, e que mal se distinguem da atividade natural biológica. Falta ao seu beneficiário, o chamado primitivo ou selvagem, consciência específica de seu precário instrumental, um prolongamento da manejabilidade da mão, de que, um dia, Engels fez exaltado elogio. Se ele inventa, não sabe que inventa.

2 Já no segundo estágio, o repertório aumenta, acompanhado pela consciência de que o seu uso, parte de uma tradição estabilizada, demanda a capacidade especial de alguns homens: os artesãos, artífices e profissionais, conservadores por excelência; o que fabricam ou modificam resulta de uma aprendizagem herdada, esquecida, que continua inercialmente, como repetição de práticas passadas, fixando-se num sistema de artes e ofícios. Mas o artesão é, ao mesmo tempo, técnico e operário, o que sabe e o que executa.

3 A técnica do técnico é aquela do pleno conhecimento das práticas em uso, quando o homem chega a fabricar o instrumento que pode fabricar tudo: a máquina. Então o conhecimento pleno das práticas e, portanto, da técnica, corresponde à noção de uma só capacidade ilimitada de fazer e de produzir. Ortega aqui, já tem aqui em vista a técnica avançada, a tecnologia, que separa o técnico do operário, e cujas potencialidades incalculáveis assustam. Devido a essa capacidade para fazer e ser tudo, capacidade imaginável, o homem já não sabe que é o que efetivamente é. E, no entanto, a assustadora técnica, a tecnologia, como pletora de possibilidades, é mera forma oca – como a lógica mais formalista, é incapaz de determinar o conteúdo da vida.

Fonte:
História e ontologia (Da essência da técnica)
Benedito Nunes
Universidade Federal do Pará
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-24301999000100002&script=sci_arttext

sexta-feira, 24 de maio de 2013

RECORDAR É VIVER (breve defesa da evocação)


















Adão, se existiu, só houve um. Ninguém mais pode ser o primeiro homem. Ser adâmico é não ter pretérito. Só presente e futuro. Essa é uma impossibilidade humana. Só Adão não tem passado.   Mito do ser-inaugural, antes dele nada havia a recordar. Pra nós, pobre humanos, a recordação é necessária e vital. Recordar é viver, literalmente.  Digo isso àqueles que teimam em negar o passado, como se sua sombra frondosa não estivesse sobre tudo e todos. Há coisas irremediavelmente feitas desse tecido, que, por mais que queiram alguns, sustém toda a tessitura do presente. Coisas fundantes e vitais, tais como a língua que falamos, as ciências, as artes. Quem há de supor uma língua toda ela feita de elementos do presente? Ou uma ciência que tente se erigir de um zero dos saberes? Há possibilidade da recriação da roda, do plano inclinado, do ponto e da reta?
Por isso, se todos somos feitos de passado, mesmo os que o negam, não há pecado algum em evocar, como não há mal nenhum no futurista. A evocação é a irmã que abre a porta ao vaticínio. E não é por acaso que o poeta já dizia:

“... que as crianças cantem livres sobre os muros
e ensinem sonho ao que não soube amar sem dor
e que o passado abra os presentes pro futuro,
que não dormiu e preparou o amanhecer...” (Taiguara)


Carlos Pequeno do Espírito Santo
filodóxo e beletrista do Largo do Amparo - Olinda


segunda-feira, 29 de abril de 2013

DON'ANA DO MARACATU (nova fonte oral e correção de rumos)

Sinhá Nana com balde na mão - 1970, em Tejipió

Quem conta a história de fontes orais, como é o meu caso, tem de admitir lapsos, imperfeições, permitidas a quem não tem formação acadêmica para analisar as entrevistas e as situações que as envolvem. Sendo este também o meu caso. Meu afã, no entanto, é registrar tudo o que me contam os meus parentes, todos acima dos oitenta anos, sobre os albores do século XX, principalmente, da Ilha do Leite, no Recife.


 Pois bem, nessa sexta, 26/04/2013, em conversa com minha Tia Enilda Rosa de Melo, octogenária, moradora do Pina e que também conviveu com Dona Ana, na Ilha do Leite, descobri pequenos pontos divergentes entre o seu relato e o do meu pai Elias Eurico de Melo, falecido há dois anos. Quase todos, na descrição dos cenários do primeiro parágrafo da postagem anterior. Claro que as duas versões merecem registro, sendo meu pai bem mais velho do que minha tia...

 Segundo Tia Enilda,em suas lembranças da Ilha do Leite, os proprietários das casas de alvenaria não eram os que citei, mas, os Srs. Manoel Rosa, Antonio de Souza e o meu tio-bisavô João Alexandrino de Melo. Este último, dono da maior casa da Ilha, detentor de uma situação financeira melhor, em relação aos outros moradores, pois, à época, era o Chefe da Manutenção da Companhia de Águas e Esgotos, prédio que existe até hoje, no lugar chamado Cabanga, ali, ao pé da Ponte do Pina. Diz que o Tio João permaneceu na Ilha, apesar das cheias frequentes e da ameaça da Liga Social contra o Mocambo. Além das 3 casas de alvenaria, havia ainda a casa do Manuel Teodoro, pai da Dona Ana, e a casa em que morava o meu avô Luiz de Melo, litógrafo e desenhista, sobrinho e filho de criação do Tio João. Falou-me das querelas de Dona Gertrudes, Tudinha, nossa tia-bisavó, esposa do Tio João, que era fã do clube das Pás de Carvão (hoje Pás Douradas), nascido ali, nas cercanias. O caso é que a mulher do vizinho, Antonio de Souza, (uma galega dos olhos azuis,num lugar de maioria negra) era fã do Lenhadores da Boa Vista (hoje da Mustardinha), rival nº 1 do Clube das Pás. Pelo carnaval a ilha era visitada pelas duas agremiações e as vizinhas se esmeravam na festa de acolhida, a ver quem fazia mais bonito na ocasião. Tia Gertrudes, mais abastada, sempre vencia a disputa. Contou-me também que lá surgiram famosas troças e clubes, tais como o Cachorro do Homem do Miúdo, de 1910, entre outros. Bons tempos...

 Minha tia Enilda me corrige, defensora ainda hoje das ações do Agamenon Magalhães e da sua Liga Social contra o Mocambo, dizendo que o meu avô saiu da Ilha pro Pacheco, por conta própria e bem antes das demolições. E que, da mesma forma fez o Manuel Teodoro, que levou a filha Dona Ana pra um dos morros do bairro de Cavaleiro, o que bate com certas teses de que o Estado Novo facilitaria a favelização dos morros do entorno do Recife, desde que os mocambeiros fossem viver de “Macacos pra lá”.

Tia Enilda descreve ainda o lugar, como tendo um só ligação com o centro do Recife através de uma ponte de madeira muito longa, que ligava a Ilha até a Rua dos Prazeres. Disse que de onde moravam viam apenas o extenso braço de maré, “a maré grande”, a leste, o imponente prédio do Hospital Pedro II e, ao sul, o Coque, antigo povoado de carvoeiros, que resiste até hoje.

 Sobre dona Ana, ela lembra que havia um grande pé de cajá, com muita sombra, com banco rústico, feito de um tronco. Diz que Manuel Teodoro ali se sentava e, vez por outra chamava pela filha:
“Calimita, ó Calimita, me traga um pote d'água”.

 Disse ainda que o Sr. Manoel Rosa construía viveiros de peixes e crustáceos, fazendo diques com a lama da maré baixa. E era da pescaria que muitos dos moradores sobreviviam. Contou-me que, havia um campo de futebol , que ficava no areial, por trás da Igrejinha da Saúde, distante uns 200 metros desta. Creio que esse campo ficava, mais ou menos, no lugar onde hoje está a Clínica ITORK, do afamado ortopedista Romeu Krause, irmão do ex-ministro Gustavo Krause.
E, por falar no ITORK, anos atrás, estando minha esposa em tratamento nessa clínica, lá conheci um senhor bem apessoado, negro elegante, longilíneo, carapinha branca. Chamava-se Nivaldo, 78 anos, e era o porteiro do ITORK. Todos os dias eu estacionava o carro e enquanto esperava a esposa em tratamento, ficava conversando com aquele senhor bom de prosa. Certo dia eu disse que meu pai havia morado por ali, há muitas décadas. E, qual não foi o meu espanto, quando ele disse que foi menino na Ilha. E foi logo confirmando o nome dos meus parentes todos. Lembrou do Campo do Bahia, de um primo meu distante que jogava bem o futebol, o Américo, por alcunha Memé. Lembrou de meu pai, de vovô Luiz. E eu então perguntei de quem ele era filho. E ele disse: do Manoel Rosa. Confirmando esse ponto da história que me passaram os meus parentes. Falou-me ainda, que do outro lado morava um carteiro, ali, dizia com os beiços, ali onde está aquele grande hospital. Ali era a casa do carteiro...
Infelizmente, Seu Nivaldo, já octogenário, filho caçula do Manoel Rosa, faleceu há pouco mais de um ano.

 Bem, são essas as correções e as novas informações que queria registrar da breve história de Dona Ana, que se mistura com a do meu povo, herdeiro que sou da Mucambópolis (rsrs), nome dado pela pesquisadora Zélia Gominho, ao Recife invisível, dos habitantes das margens dos Rios Capibaribe, Jiquiá, Tejipió e Jordão, expulsos pela política higienista do Estado Novo, e que foram fundar os grandes aglomerados dos morros da zona oeste da cidade.
Viveiro de Peixes - Percy Lau

P. S.:
Meu pai, tricolor de quatro costados, dizia-me que, ali perto, na Boa Vista, foi fundado o Santa Cruz, (quem sabe uma dissidência do Bahia, da ilha do Leite?). O Santinha, clube inicialmente alvinegro, é o xodó de boa parte da Família Melo. Eu, respeitosamente, sou uma ovelha negra, ou rubro-negra, já que sou torcedor do glorioso clube de outra Ilha, a do Retiro, ali pertinho. Clube mais antigo, pois é de 1905, e cujo fundador trouxe o esporte bretão para essa terra maurícia, para, bem depois, ensinar aos outros. O Náutico só aderiu ao futebol em 1909. O Santa só surgiria em 1914. Perdoem-me, os Melo, da Ilha do Leite, mas sou do Sport Club do Recife!


sexta-feira, 26 de abril de 2013

MORRE UMA DAMA DA CORTE NO RECIFE

Pólo Médico da Ilha do Leite
Recife-PE

Quem vê as torres do pólo médico da Ilha do Leite, nem imagina como eram aquelas terras, há algumas décadas. Terras? Ali quase não havia terra. No início do século XX, só se viam pequenos bancos de areia, três pequenas casas de alvenaria e alguns palafitas. Uma dessas casas era do Vovô Luiz. Outra, do meu Tio-avô João, e a terceira de Seu Manuel Teodoro.
No meio dessa pequena povoação de mocambos (mocambo era o nome que na época se dava aos casebres ribeirinhos do Recife), erguia-se a pequena capela de Nossa Senhora da Saúde, que até hoje está lá, resistindo entre os espigões da Praça Miguel de Cervantes. Pois é, o antigo banco de areia hoje é uma grande praça e no seu entorno já não se vê o antigo manguezal. Grandes hospitais invadiram a margem do Rio Capibaribe e a cidade avançou sobre o antigo lugarejo de pescadores, carvoeiros, lavadeiras e outros ofícios da população ribeirinha, de maioria negra. 

Pça Miguel de Cervantes
(com igrejinha da Saúde)

Ali nasceu a nossa Carmelita Deodoro da Silva, nome de batismo, pois, na verdade, ela usava Ana Carmelita Teodoro. O seu pai, Manuel Teodoro, a chamava carinhosamente de “Calimita”...
Nós a conhecemos por Sinhá Nana, em casa de meus avós, quando ali ficou agregada, nos idos de 1960. Recentemente, o povo do Maracatu a conhecia por Don'Ana.


Capela de N. Sra da Saúde
Ilha do Leite - Recife-PE


Logo a família de Don'Ana, a de meus avós e todos os outros moradores seriam expulsos da Ilha do Leite, deslocando-se para a periferia da cidade. Tempos sombrios, em que a política do Estado Novo demolia os mocambos e a chamada Cidade Nova crescia, sob a política higienista da Liga Social contra o Mocambo, sufocando os mais pobres. Esse filme, infelizmente, a gente ainda vê hoje em dia...
Vovô Luiz e vovó Joaninha
(amigos de Don'Ana, desde a Ilha do Leite)
Álbum Família Melo
Don'Ana foi viver com meus avós, (que eram seus vizinhos desde a infância na Ilha), no bairro humilde do Pacheco, zona oeste do Recife. Lembro-me dela em sua azáfama diária: lavava e engomava os paletós de meu avô assoprando as brasas de um pesado ferro de passar. Era uma gigante para trabalhar. Não descansava. E além disso, cuidava com desvelo das crianças da casa. Vez por outra, nos levava ao Grupo Escolar, e apertava bem a nossa mãozinha, com medo de nos perder nas ruas. Era uma cuidadora amorosa e fiel.

Sinhá Nana (com balde na mão)
Álbum Família Melo
(3ª Trav. Estrada do Curado, Tejipió -  Década 1970)

Mas, quando se aproximava o carnaval, Don'Ana sumia. É o maracatu, dizia minha avó. Ela some nos dias que antecedem a festa e só volta na quarta- feira de cinzas. Eu, menino curioso, ficava intrigado com aquilo. Para onde ia a nossa Sinhá Nana?
Menininha
(calunga do Almirante)

Hoje eu sei porque ela sumia. É que ela era uma dama do paço, ou do “paaço”, em português arcaico. Paço, quer dizer, palácio. Lugar onde vive a realeza. E Don'Ana era a dama do paço da corte de um maracatu. Era a dama que dança com a calunga, uma boneca que representa a parte mística dos maracatus. E desde sempre foi dama, exclusivamente, do Maracatu Almirante do Forte. Jamais abandonou essa nação, que ela amava com toda a pureza d'alma. E como era puro o coração de Sinhá Nana!

Essa pureza, junto com os severos costumes da época, fez com que ela, ao engravidar do filho único, decidisse sair da casa de meus avós, que, por essa época, já tinham mudado para a casa de Tejipió. Don'Ana, grávida, foi acolhida em casa do fundador do Almirante, Mestre Antonio José da Silva, o pai do nosso Mestre Teté, e nunca mais saiu do convívio dessa família, que a tinha como uma segunda mãe. Casando, o filho único, tentaria morar em casa da nora, ali mesmo, nas cercanias. Mas o seu lar seria, definitivamente, a sede do Almirante do Forte, atual residencia do Mestre Teté, na Estrada do Bongi, 1319.
O tempo passou. Meus avós faleceram. E por décadas não mais tivemos notícias da nossa Tia Nana.
Sede do Maracatu Almirante do Forte
(durante a reforma em 2009)









Reencontrei Dona Ana em meados de 2008, por ocasião em que o Mestre Teté nos convidou para participar do Projeto do Ponto de Cultura Almirante do Forte. Dona Ana, senhora mais que centenária, já não desfilava com o cortejo. Mas estava sempre presente nos ensaios do grupo percussivo. Afinal, ela morava ali mesmo, na sede do Almirante. Quem não há de lembrar daquela sorridente velhinha, olhinhos apertados, a dançar, miudinho, num recanto da sala principal?

O maracatu era o destino de Don'Ana. Não tinha mais notícias do filho, que fora morar no interior, e nunca mais veio visitá-la. Sem outros parentes, a sua família era a nação Almirante. E ali viveu cercada de carinho e de cuidados, por quase 60 anos.
Mestre Teté, ladeado por Dona Ana (de lenço azul)
e Dona Josefa, sua genitora, na sede do Almirante



Hoje, na pátria espiritual, sei que Don'Ana, com aquela simplicidade, contempla o seu povo, a sua nação, uma das nações mais tradicionais de Pernambuco, com a certeza que a sua gente vai segurar no leme com fé e fazer o Maracatu Nação Almirante do Forte navegar para muitas vitórias, nesse oceano bravio, que é a nossa cultura popular.




Até um dia, Sinhá Nana!
Que a tua energia esteja sempre com nossa Nação!


Ana Carmelita Teodoro
24/05/1906 - 23/04/2013





segunda-feira, 22 de abril de 2013

DA SALVAGUARDA DO FREVO ( uma tentativa de segregar a espontaneidade do povo?)

Que falta nos faz Romero Amorim...




A propósito da feliz iniciativa, neste mês de abril, da chamada para eleger os representantes do Comitê para a Salvaguarda do Frevo, temos duas palavrinhas a dizer:


1) A cultura popular, os folguedos, brincantes e outras festas de rua, sejam religiosas ou profanas, é fruta da atividade espontânea do povo anônimo. Tanto faz se devotos ou foliões. Cultura se faz na rua. Por isso, de nada adianta o Poder Público intentar um folclore por meio de eventos criados por lei, artificialmente.
Essa maneira de atuar do Estado nasce de uma compreensão defeituosa da cultura e da tradição, elementos essencialmente intra-históricos, como dizia Unamuno. O erro consiste de uma tentativa inútil de desentranhá-las do seu nascedouro. A cultura popular é, pois, construção intra-histórica, ou seja, é do povo o seu cerne e a sua alma. Consegue assim, o Estado, ao legislar sobre costumes e folguedos, tão-somente transformá-los em meros espetáculos para fruição de turistas. Meros produtos...
Não vi de perto, mas ouvi dizer, pela boca de viajantes, que, no Norte do Brasil, há índios à beira das rodovias, colares e pulseiras às mãos, acenando aos caminhoneiros. Induzidos pela compreensão mercantilista do turismo, parecem, eles mesmos, os silvícolas, exóticas criaturas artesanais, expostas no acostamento. Pobres nativos, são desalojados da vida tribal e fecunda do aconchego da sua intra-história, para serem lançados nesse triste espetáculo, que se rende ao apelo da mídia, do capital, e o que é pior, da necessidade. 
NÃO É ISSO O QUE QUEREMOS PARA A CULTURA POPULAR DE NOSSO ESTADO! SOMOS UMA CULTURA COM RAÍZES AUTÊNTICAS E VIGOROSAS E POR ISSO, ATENÇÃO COM O QUE SE ESTÁ FAZENDO, AO TRANSFORMÁ-LA EM MERO PRODUTO!

2) Bochichos do meio cultural revelam a possibilidade de que as agremiações mais humildes, que não têm inscrição estadual ou municipal, sei lá, CNPJ, estariam alijadas desse projeto de salvaguarda. Bem, mas se o projeto foi pensado para proteger o frevo e suas derivações, a quem deveria, prioritariamente, amparar? Aos grandes blocos, que têm o seu valor, mas que não precisam de ajuda do poder público, pois são formados pela nata da sociedade, por foliões de melhor poder aquisitivo?
No caso que me toca mais de perto, os blocos líricos menores e sem mídia, recomendo cautela! Não devemos ceder ao anseio de crescer por crescer, e, assim, nos descaracterizarmos. Pois, pode parecer redundante o que lhes digo agora, mas, cultura popular se faz mesmo é pelo povo e para o povo. O mais não passa de uma artificial, estéril e inútil intervenção do Estado na espontaneidade dos anônimos geradores da tradição e dos costumes. E é isso o que mais me preocupa: a espontaneidade. Os blocos líricos têm sua origem ligada às famílias suburbanas, com seus saraus e serestas, com seus ranchos de reis e pastoris, vide Prof. Julio Vila Nova, e nasceram por iniciativa desses foliões, e não do poder público. Essa sempre vai ser a forma como nascerão as agremiações e os brincantes: do seio do povo, das famílias e de seus grupos mais próximos. E pode parecer uma contradição o que agora vou lhes dizer, mas, mesmo que sejam segregados, que não consigam os requisitos formais para receber as verbas públicas, os cordões líricos surgirão de todos os lados. Pequenos, modestos, sem o brilho das plumas e dos paetês, mas cheios de criatividade e de alegria! 
Se esses bochichos realmente forem verdadeiros, nada há a temer, pastorinhas e flabelistas! A espontaneidade de nossa gente irá resistir, como sempre vem resistindo, e nossos blocos sem mídia estarão, ainda assim, na vanguarda da alegria do carnaval popular do Recife! Com verbas ou sem elas, seremos sempre os "alegres bandos"!

Deixo para reflexão, trecho  de um samba afamado, do Chico Buarque:

"Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar

Na sua frente..."


P. S.: 
Quanto à imagem deste post, em que o poeta Romero Amorim, recebe flores na Praça da Várzea,
lamentamos a ausência de nosso patrono. Ele ia até o lugar em que nascem os pequenos blocos. Ele nos levava sempre uma palavra de motivação. Saudades do Poeta da Aurora... 

domingo, 17 de março de 2013

JORNADAS CARNAVALÍRICAS (ou, Batutas não morreu, moça!)

Orquestra de Batutas de São José


 Créditos da imagem:




Estava eu no encontro de blocos Eu Quero é Mais, naquele fatídico 16/02/2013, dia em que o nosso músico Luquinhas Lyra foi baleado covardemente, na frente do Estádio do Náutico, (hoje, faz 30 dias, ele já saiu do coma e está em franca recuperação)... 

Bem... mas o que quero mesmo registrar é algo muito constrangedor que, infelizmente, meus pobres ouvidos foram obrigados a ouvir, no trajeto dos blocos líricos. Estávamos na Prudente de Morais, uma das famosas ladeiras de Olinda, quando cruzamos com o afamado Bloco Batutas de São José, do inolvidável Maestro João Santiago, que, no início do século XX, compôs Sabe lá o que é isso, a mais gostosa marcha de blocos do nosso carnaval:

“...sem você, meu amor,
Não há carnaval...
Vamos cair no passo
E a vida gozar!”

Pois bem, eu, folião de carteirinha e fã do Batutas, fiz a tradicional saudação:

Não deixem morrer Batutas!  

E, logo em seguida, escuto uma bela e firme voz feminina gritar, bem atrás de mim:

Já morreu faz tempo!

Voltei os olhos, curioso, e vi uma bela pierrete, portando um belíssimo flabelo, à frente de um bando de outras pierretes, lindamente trajadas. Era flabelista, a moça de cuja boca de carmim eu ouvi aquela verdadeira blasfêmia contra o bloco Batutas de São José, deca-campeão dos carnavais na década de 1960. 

Ah, a década de 60...
Batutas, por essa época, dominava o carnaval, seguido pelos Banhistas do Pina, outro grande campeão e por outras belíssimas agremiações, que eram a alegria dos amantes dos blocos líricos, como eu.

Não,senhorita! Não morreu, o grande Batutas. Jamais morrerá!  
Ele está na nossa alma, no sangue dos pernambucanos e foliões de todas as partes. 

E é por isso que lutamos, nós compositores dos blocos anônimos, os que têm pouca mídia e, portanto, pouca ajuda da Prefeitura. Lutamos pela preservação dos blocos mais humildes, que já foram a fina flor desse carnaval lírico.
Dia desses, vi Pirilampos de Tejipió, que evoluía, humildemente, no Pólo da Várzea. Meu coração ficou apertado ao ver o sofrível aspecto daquele bloco afamado, que foi o xodó do grande Guilherme de Araújo, e que sempre fez bonito nos carnavais de outrora. Não é à toa que nos versos de um dos mais belos frevos de bloco de todos os tempos, cita-se Guilherme e o seu Pirilampos:

“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois Fum
Dos carnavais saudosos?”

Pois é, moça, é por eles que lutamos bravamente, que resistimos contra os insensíveis gestores da coisa pública, com honrosas exceções, que nada sabem dos bastidores de luta, dos sacrifícios que se fazem para botar um bloco na rua. E aqui louvamos a resistência dessa nova geração, que gosta do lirismo desses blocos antigos. Por isso, repito:

Não,senhorita! Não morreu, o grande Batutas. Jamais morrerá!  

Para concluir, tenho uma auspiciosa notícia: 

Descobri, em andanças pelo meu querido bairro da Várzea, que os blocos sem mídia estão articulando encontros na periferia da cidade, verdadeiras jornadas carnavalescas, em que seus cordões de pastorinhas, suas orquestras dedilhadas em cordas e palhetas, seus seresteiros e poetas estarão empunhando o flabelo da resistência popular pela nossa cultura. Exultemos! Um grupo solidário de foliões está conspirando em prol da alegria! 

Ainda ontem, à sombra de um frondoso jambeiro varzeano, centenário como tudo naquele arrabalde, ouvi palavras alvissareiras de uma das flores do Capibaribe, (que, por hora, não direi o nome, mas quem é de bloco lírico, sabe bem de quem falo). Trouxe-me, aquela flor, palavras inteligentes e decididas, que alegraram e muito o meu coração carnavalesco. É que nós, os blocos enraizados nos subúrbios do Recife e cidades do entorno, a partir de junho, talvez antes, estaremos trocando visitas uns aos outros, em festivas caminhadas líricas, pelas ruas dos nossos bairros, subvertendo, com alegria, o descaso dos nossos gestores, e produzindo cultura pelos nossos próprios meios, mesmo sem mídia, sem subvenção, que isso nunca foi obstáculo para os verdadeiros foliões.

Avante, seresteiros, avante, pastorinhas! O verdadeiro carnaval lírico está de volta aos lugares de onde saiu: os subúrbios históricos do Recife.  
Salve a periferia, salve os blocos líricos, salve o movimento de cultura popular, que nunca morreu, nem nunca morrerá. 

Batutas tem um passado de lutas.
Salve Batutas, Batutas vai vencer!

Finalmente, e por sabermos que os blocos nasceram também do ciclo natalino, oriundos das jornadas dos ranchos e pastoris, que se estendiam do dia dos Reis até o carnaval (vide Prof.  Júlio Vila Nova) sugiro o nome de Jornadas Carnavalíricas, para esses encontros e caminhadas suburbanas dos nossos alegres bandos, que ora  anunciam essa tomada de atitude pelo lirismo do carnaval dos subúrbios.

Luiz Eurico de Melo Neto
(um registro para a história)